Municípios Inteligentes e a Transição Energética

Municípios Inteligentes e a Transição Energética

Qual poderia ser a aplicação prática? Este recurso pode ser, por exemplo, utilizado no controle do trânsito de uma grande cidade, de forma a otimizar a emissão de gases poluentes pelos motores dos automóveis. Outra aplicação pode ser o monitoramento de áreas de preservação ambiental, no que diz respeito a incêndios, alagamentos, acidentes. Em ambos os exemplos há uma cadeia de relações em causa e efeito que incidem em questões de ordem econômica, ambiental e de bem-estar social.

O crescimento populacional traz consigo demandas que desafiam organizações públicas e privadas, no sentido da busca de soluções para o gerenciamento de regiões urbanas e rurais. Enquanto unidades administrativas, os municípios englobam tanto regiões urbanas quanto rurais, de maneira que a adequada apropriação de recursos e sua aplicação criteriosa podem ser de grande utilidade para um gerenciamento efetivo. Paralelamente a esse fato, existe na contemporaneidade uma profunda transformação tecnológica relativa à geração e transmissão de informações, expressa pelos processos de digitalização e de inteligência artificial. Assim, os produtos dessa transformação em curso podem ser utilizados como ferramentas para o referido gerenciamento e, consequentemente, como vias de contribuição para a redução de desigualdades, promoção do progresso socioeconômico e preservação ambiental, de modo a se conquistar melhorias de qualidade de vida para as populações.

Os municípios apresentam uma grande variedade de cenários complexos no que diz respeito às formas de habitar, trabalhar, locomover-se e conviver, bem como reúnem uma diversidade de grupos humanos, com suas particularidades e diferentes necessidades. Dessa forma, uma mesma região pode tanto abrigar grandes aglomerados urbanos, com todos seus problemas de planejamento espacial, vias de fluxo, segregação territorial e uso de energia, quanto áreas de cultivo, de preservação ambiental, reservas indígenas, comunidades extrativistas e quilombolas. Trata-se de contextos influenciados por formas de organização histórico-social, que impactam o meio ambiente e são por ele amplamente impactados, bem como necessitam de estratégias que promovam a interação entre pessoas, a inclusão econômica e a sustentabilidade. A questão energética está intimamente relacionada com todo esse panorama e todas as suas especificidades, de forma a ser reconhecido que existem situações de ampla exclusão energética e tecnológica, cada vez mais inaceitáveis à medida em que a economia global aumenta sua dependência de energia e tecnologia.

A proposta do Eixo Temático VIII do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (CPTEn) é trazer contribuições para o gerenciamento dos desafios brevemente descritos acima e, para que isso seja alcançado, estrutura-se em três frentes distintas e sinérgicas. A primeira delas denomina-se “Conectividade” e está voltada para a comunicação de dados através de interconexões de pontos coletores, o que é conseguido pelo desenvolvimento de redes digitais robustas, auxiliadas por um sistema computacional que irá diminuir o tempo entre a coleta das informações em sua fonte e sua entrega aos destinatários. Em outras palavras, trata-se de aproximar a fonte dos dados ao local de sua aplicação, por mais distantes fisicamente que possam estar.

Isso é conseguido através da computação de borda (edge computing), de forma a otimizar a utilização da frequência ou conjunto de frequências de transmissão (banda ou bandas) dentro da rede. Esta tecnologia está bastante relacionada com o conceito de “internet das coisas” (IoT, na sigla em inglês), ou seja, a utilização de um grupo de sensores instalados em um ambiente e interconectados entre si, capazes de coletar dados daquele ambiente, lê-los, interpretá-los e transmiti-los a outro ambiente, de modo que providências e/ou intervenções possam acontecer. Num cenário de IoT, um conjunto de serviços pode ser aprimorado pela computação de borda, que tem a capacidade de analisar as informações no local, sem a necessidade de que, para isso, sejam processadas em lugares distantes. Tal característica faz com que a nuvem digital de dados seja dispensada e otimiza o trabalho dos sensores.

Qual poderia ser a aplicação prática na realidade de um município? Este recurso pode ser, por exemplo, utilizado no controle do trânsito de uma grande cidade, de forma a otimizar a emissão de gases poluentes pelos motores dos automóveis. Outra aplicação pode ser o monitoramento de áreas de preservação ambiental, no que diz respeito a incêndios, alagamentos, acidentes. Em ambos os exemplos há uma cadeia de relações em causa e efeito que incidem em questões de ordem econômica, ambiental e de bem-estar social. Devido a essas características, a frente “Conectividade” do CPTEn subdivide-se em duas sublinhas: Redes Inteligentes e Computação de Borda. Por isso, há uma grande relação com as pesquisas dos Eixos Temáticos I, II e III.

Relacionada à frente “Conectividade”, uma segunda frente compõe o âmbito do Eixo VIII e visa o desenvolvimento de sensores. Por isso, essa frente é denominada “Sensoriamento” e envolve o desenvolvimento de estruturas físicas (Hardware) e programação (Software), com o objetivo de contribuir para o monitoramento eficiente de diversas grandezas físicas de grande importância para a tomada de decisões no contexto de um gerenciamento bem-sucedido e inteligente dos municípios. A frente “Sensoriamento” engloba duas linhas distintas:

  1. Radares – ocupa-se do estudo de uma modalidade denominada Radar de Abertura Sintética (SAR, na sigla em inglês). Trata-se de um dispositivo que se movimenta em relação a seu objeto-alvo, normalmente acoplado a uma aeronave, de forma a criar uma ampla varredura. Quanto mais o radar abre sua trajetória em relação a seu alvo, maior a resolução da imagem captada. O processo consiste na emissão de pulsos de ondas eletromagnéticas ao longo da trajetória (a “abertura”), de modo que o eco de cada pulso é recebido de volta e gravado. O dispositivo, então, sintetiza todos os ecos recebidos e os conjuga em uma única imagem. O sistema utilizado no Eixo VIII é inédito e é operado em três frequências distintas de ondas eletromagnéticas, com cinco antenas arranjadas de acordo com as frequências empregadas. Utiliza também um sistema sensor de movimento (MSS), um sistema de navegação global por satélite (GNSS) e uma unidade de medição inercial (IMU). O resultado é um dispositivo bastante leve, de 3kg, de modo a ser possível acoplá-lo a um drone e utilizá-lo em operações inovadoras em setores de grande importância, como a agricultura de precisão, mineração, prevenção de desastres naturais, arqueologia etc. A proposta do Eixo VIII é o desenvolvimento de um sistema autônomo para aplicação no monitoramento de geradores de energia, linhas de transmissão e centrais de distribuição, abrangendo tanto regiões urbanas como rurais.
  2.  Fotônica – trata-se de uma tecnologia que utiliza a luz visível ou feixes de luz infravermelha para a transmissão de informações. A linha de fotônica do Eixo VIII propõe o desenvolvimento de sensores distribuídos à fibra óptica, dispositivos óptico-eletrônicos coletores de dados (interrogadores) integrados e sistemas formados por emissores de luz infravermelha acoplados a lâmpadas LED para comunicações ópticas no espaço livre. Sua aplicação prática está igualmente na coleta e leitura de dados, passíveis de transmissão em rede no contexto do monitoramento. A frente “Sensoriamento” é desenvolvida em estreita colaboração com os Eixos Temáticos VI e VII.

Por fim, uma vez que o uso de eletricidade tem se tornado uma condição essencial para a contemporaneidade, a terceira frente que compõe o Eixo VIII denomina-se “Educação” e volta-se para a Tecnologia Social, ou seja, a tecnologia como fator para a inclusão social. É reconhecido que, no Brasil, a Tecnologia Social tem recebido pouca atenção e espaço nas agendas dos formuladores de políticas públicas, de modo que, dada a significativa exclusão social no país e na América Latina, torna-se necessário considerar de que maneira os problemas, necessidades e assuntos dos movimentos sociais têm sido tratados, como também avaliar o aumento do peso desses fatores nas proposições das políticas de Ciência e Tecnologia (Dagnino; Bagatolli, 2010). Assim, a proposta de pesquisa dessa frente preocupa-se com o uso inclusivo, eficiente e racional de energia elétrica, uma vez que os municípios englobam uma diversidade de cenários relativos à eletricidade. Ou seja, desde realidades de falta de acesso até formas esbanjadoras de consumo, que incluem práticas ilegais de conexão à rede elétrica (os “gatos”), existentes em todos os setores da sociedade, mas de modo especial entre a população de baixa renda. Tem-se, então, um problema complexo relacionado à inclusão energética e socioeconômica daqueles em estado de vulnerabilidade, que incide em aspectos de interesses das empresas distribuidoras de energia e impactam diretamente o meio ambiente.

A frente “Educação” propõe uma ação conjunta entre universidade, administração pública e setor privado no sentido de oferecer inovações tecnológicas com potencial de serem transformadas em ações inclusivas no que diz respeito ao acesso à energia e promoção social, de modo a atender interesses governamentais e empresariais. Sua proposta de pesquisa é o estudo da formação de Comunidades de Energia, conceito que traduz o agrupamento de pessoas em torno de um aparato técnico para gerar eletricidade, administrá-la e distribuí-la conforme sua realidade e necessidades, associadas à transmissão de conhecimentos técnicos por vias não escolares (Educação Não Formal), de modo a permitir autonomia e consciência para a tomada de decisões em relação à energia.

Um projeto piloto será instalado na forma de uma micro usina fotovoltaica num bairro periférico da cidade de Campinas, a Cidade Satélite Íris, considerada pelo IBGE (2010) como a de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município. A micro usina será entendida como um Laboratório Urbano Vivo, na perspectiva da Engenharia, da Educação Não Formal, da Economia e da Sociologia. Os trabalhos serão desenvolvidos em parceria com a Prefeitura de Campinas e com a ONG Projeto Gente Nova (Progen), entidade que atua há mais de 35 anos na região. Os dados coletados serão analisados de modo qualitativo e quantitativo para subsidiar tomadas de decisão no setor público e privado. A frente “Educação” desenvolve-se em colaboração com todos os Eixos Temáticos do CPTEn.

Júlio César Ferraz Amstalden é pesquisador do Eixo VIII do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/4862799059240894

Texto reproduzido do dossiê Transição Energética da revista ComCiência
Ilustração da capa: Paola Champi | midiáloga bolsista do Campus Sustentável Unicamp

Referência
Dagnino, R. (Org.). Tecnologia Social: ferramenta para construir outra sociedade. 2a edição. Campinas: Komedi, 2010.