Educação, geoética e transição energética para a sustentabilidade

Educação, geoética e transição energética para a sustentabilidade

A geoética se constitui em pesquisas e reflexões sobre os valores que sustentam o comportamento e práticas humanas em sua relação com a natureza. Lida com implicações éticas, sociais, culturais e educacionais, na busca de diálogo entre campos do conhecimento que envolvem a transição energética, como sociologia, filosofia e economia.

Para Bernard Charlot (2006), a educação é uma ciência plural; o que a torna essencialmente dialógica. Sua potência resta, portanto, nas convergências de saberes, onde os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros (Santos, 2002 p.17). Adjetivá-la enquanto educação para a sustentabilidade acrescenta a essa compreensão interdisciplinar baseada na teoria da complexidade moraniana (Morin, 1986), um compromisso com uma nova postura epistêmica, em que a crise da racionalidade e a gestão política devem ser levadas em consideração enquanto contextos importantes para as decisões que visem soluções inovadoras de problemas contemporâneos (Goergen, 2010; Assis, Rutkowski, 2016).

Independente das motivações daqueles que defendem a interdisciplinaridade, fato é que esta se apresenta, hoje, como uma oposição sistemática a um tipo tradicional de organização do saber, o que constitui um convite a lutar contra a multiplicação desordenada das especialidades e das linguagens particulares nas ciências (Japiassu, 1976). Para Fazenda (1979), a interação é condição para a efetivação da interdisciplinaridade, que pressupõe uma integração de conhecimentos visando novos questionamentos e novas buscas; em outras palavras, a transformação da própria realidade.

Justamente pela consolidação destas questões na área da educação, que atualmente ela enfrenta um embate teórico-político. O processo de mudança nas concepções de meio ambiente ao longo do tempo foram influenciando as compreensões sobre educação ambiental. De um lugar inóspito a um ambiente paradisíaco (Diegues, 2008), posições protecionistas e conservacionistas vão se desenhando, de maneira que os segundos entendem a necessidade de uma simbiose entre desenvolvimento da sociedade e uso de recursos naturais (McCormick, 1992), o que vai ao encontro de uma compreensão da administração da escassez na perspectiva macroeconômica, caminhando na construção do que chamamos hoje de desenvolvimento sustentável (Diegues, 2008; McCormick, 1992). Com a entrada de uma discussão econômica, as questões de gestões políticas e públicas são tidas como centrais nas políticas públicas de educação ambiental (Layrargues; Lima, 2014; Carvalho, 2020).

Nesse sentido, Educação, Geoética e Transição Energética são algumas referências de desenvolvimento do eixo V do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética – CPTEn. A questão norteadora e principal problema deste eixo diz respeito a como potencializar a participação dos atores intermediários (agentes públicos) e finais (usuários de serviços públicos) nas ações de eficiência energética, redução do consumo e dos dispêndios com energia elétrica nos edifícios públicos, e fomentar as oportunidades de geração e uso de energias renováveis do Estado de São Paulo.

Se a educação tem por objetivo a formação de pessoas, o eixo V é essencial no acompanhamento de desenvolvimento de novas formas de uso da energia, dada a necessidade de conscientização social sobre os resultados das pesquisas e as implicações éticas delas derivadas. O recorte da geoética se relaciona com uma perspectiva muito singular de geocientistas que se preocupam com a proteção da natureza no âmbito de suas investigações. No entanto, não envolvem filósofos em seus debates e aí está a sua principal fragilidade. Isto não significa dizer que somente filósofos possam debater temas relativos à ética, porém, não os incluírem nos debates parece um equívoco já observado por Frigo e Ifanger (2021). Não se pode desenvolver a ciência no geral, ou formas de geração de energia de maneira particular, sem a necessária interlocução com o campo educacional e, neste caso, mais especificamente, com aspectos relacionados à formação humana que envolvem implicações éticas. Afinal, questiona-se: qual a responsabilidade ética dos cidadãos em uma sociedade no que concerne ao desenvolvimento da ciência?

Poder-se-ia dizer que uma coisa é o desenvolvimento científico e outra a necessidade de políticas sociais. Todavia, neste século XXI, observa-se um forte movimento em torno da conscientização referente ao desenvolvimento científico na direção ambiental, seguindo, fundamentalmente, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) – especificamente os de número 4, com a educação de qualidade; 6, na busca de água limpa e saneamento; 7, no fomento da energia limpa e acessível às diferentes fontes, principalmente, renováveis, eficientes e não poluentes; 8, ao eleger o crescimento econômico com relevante destaque para o trabalho decente; 11, na busca de uma cidade sustentável; 15, na direção de se ter a proteção da vida na terra; e 17, com suas metas que contribuem para as parcerias e meios de implementação de todos os ODS.

Isto se dá pelo fato de que o cientista não é mais compreendido como distante da sociedade, como um ser superior, mas, justamente, como partícipe dela. Os ODS, portanto, podem orientar o desenvolvimento de pesquisas que equacionem problemas construídos pelo próprio homem ao longo de sua história, assim como, propiciar leituras críticas e oportunidades de reflexões e proposições que melhor se adequam à realidade brasileira.

Por muito tempo o desenvolvimento científico se distanciou do senso comum. Por influência do positivismo, o próprio conhecimento foi definido como a relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. Definição precária porquanto separava o homem da natureza. Durante o século XX, diferentes autores (Balman, 2013; Berman, 1981; Santos, 2008) buscaram alternativas para se construir o conhecimento de forma responsável e pensando a conjunção necessária entre a produção científica e a sociedade. Boaventura de Sousa Santos (2008) em seu Discurso sobre as Ciências afirmou a necessidade de construção de um paradigma científico social e não mais um paradigma dominante só científico, totalitário e dogmático que despreza o social.

Nesse contexto, o eixo V pensa educação, formação e capacitação para a sustentabilidade, assumindo uma perspectiva interdisciplinar do conhecimento para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável (Charlot, 2006; Santos, 2008; Morin, 1986; Japiassu, 1979; Fazenda, 1979). Assim, considera-se a educação como força transformadora para uma nova sociedade, relacionando o eixo V com os ODS mencionados, com o movimento em torno da conscientização relativa ao desenvolvimento científico na direção ambiental, e com o processo formativo de usuários, tomadores de decisão, multiplicadores e agentes públicos relacionados à questão energética.

Na perspectiva que investigações realizadas por pesquisadores do eixo buscam o diálogo entre participantes do segmento da educação e demais segmentos de atuação da gestão pública, com destaque para as áreas da saúde e segurança pública, há um contexto que considera a totalidade da sociedade e suas idiossincrasias.

Um exemplo específico de ação exitosa do eixo V é a sua articulação com ações do Programa Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão Comunitária “Olhos no Futuro”, junto ao Campus Sustentável da Unicamp. Seu objetivo central é promover o conceito de trabalho decente para crianças e adolescentes em idade escolar por meio dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), a fim de empoderar os educandos e combater o trabalho infantil e a exploração no trabalho entre jovens e adultos, esclarecendo sobre o que caracteriza o trabalho análogo ao escravo.

Não se busca apenas – o que já seria importante – a realização de palestras para a conscientização dos problemas, mas o engajamento de jovens em ações concretas que possam ressignificar a compreensão de problemas sociais. É neste sentido que há projetos em desenvolvimento no eixo V que envolvem a participação efetiva de jovens do Ensino Fundamental II e Ensino Médio como protagonistas de ações que possam auxiliá-los, em um primeiro momento, mas também a seus interlocutores das escolas e em seus bairros sobre o compromisso ético individual e coletivo em relação à transição energética. Afinal, qual a compreensão da responsabilidade ética dos jovens sobre os usos de distintas formas de produção de energia?

Energia é um tema educacional de saída, embora se constitua em termo técnico e específico das ciências naturais. Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo do século XIX, afirmou que o ser humano é vontade de potência (Der Wille zur Macht) e nada além disto (Nietzsche, 1999). Embora ele não tenha focalizado questões em torno da transição energética, por não ser tema do século XIX, sua noção de potência significa um tipo de energia interna e externa que move o mundo e pode ser estratégica como base da formação de jovens como protagonistas do futuro. Em outros termos, se o homem é vontade de potência e se esse conceito engloba a potência de construção, que também inclui a necessidade de destruição, então, está-se diante de uma forma de concepção de energia que ultrapassa a perspectiva científica.

Tal assunção significa compreender o ser humano como base de ressignificação do mundo. Se o ser humano transforma o mundo e outros tantos autores já se debruçaram sobre isto, então será a educação a fonte e ferramenta da referida transformação, no sentido de considerar o engajamento de cada um no mundo em ações do dia a dia na busca de superar equívocos já feitos no passado que levaram à destruição da natureza.

Para que as ações do eixo V não fiquem apenas no discurso, então, o envolvimento dos estudantes e funcionários se torna imperativo. Outro exemplo é a investigação que focaliza a questão da geoética e a educação ambiental, seja pela potencialidade de se construir com a comunidade escolar, especificamente do Ensino Médio, protagonistas sociais que possam auxiliar os moradores de seus bairros em relação à necessária conscientização das novas formas de produção de energia, seja, sobretudo, pela necessidade de fomentar o cuidado com a natureza.

A geoética se constitui em pesquisas e reflexões sobre os valores que sustentam o comportamento e práticas humanas em sua relação com a natureza. No geral, os geocientistas defendem que este campo do conhecimento lida com implicações éticas, sociais culturais e educacionais, na busca de diálogo entre campos do conhecimento de produção de resultados que envolvem a transição energética, por exemplo, como a Sociologia, a Filosofia e a Economia, para citar alguns exemplos.

Os indicadores do eixo V estão associados com o número de pessoas formadas em cada frente, sendo elas multiplicadoras de ações e práticas sustentáveis, bem como com as ideias e gestão sustentável de eficiência energética. Com base nos autores e autoras já mencionados, a inovação está associada ao próprio processo formativo, que tem o poder de transformar e contribuir com a emancipação das pessoas na direção de ressignificar o mundo a partir de outros e novos valores.

Busca-se, a partir da epistemologia da interdisciplinaridade, a construção dos eixos articuladores centrais e complementares dos ODS, em consonância com os demais oito eixos estruturantes do CPTEn, com seus valores, princípios e diretrizes. Como estratégias de solução para o problema já explicitado, foi realizado um ajuste das frentes investigativas, tornando-as mais objetivas e aderentes ao público-alvo das ações, além de promover a relação direta com os demais eixos. São elas: (i) Educação, ética, energia e interdisciplinaridade: possibilidades a partir dos ODS; e (ii) Formação e capacitação de gestores, agentes e usuários: energia e sustentabilidade.

A partir das ações do eixo V, espera-se obter importantes resultados para as edificações públicas do Estado de São Paulo, a saber, (i) disseminar a importância da Política Nacional de Educação Ambiental no âmbito escolar, potencializando a formação de agentes de transformação; (ii) compreender o papel das variáveis psicológicas na promoção de alterações comportamentais ao encontro de um desenvolvimento sustentável a partir da prática da empatia, aplicação de métodos ativos e adoção da Comunicação Não Violenta (CNV); (iii) ampliar essas alterações para além dos espaços de educação formal, como também os de educação não formal e/ou informal; (iv) garantir que os gestores públicos e estudantes do ensino médio se apropriem dos conhecimentos sobre gestão energética para a adequada formulação de políticas e regulamentações coerentes e exequíveis para a população; (v) capacitar agentes comunitários de energia, incluindo estudantes da educação básica, na perspectiva dos já existentes agentes comunitários de saúde e de saneamento, para auxiliar a educação dos atores finais, multiplicando as atuações sustentáveis; (vi) conceber a educação ética como área fundamental para a estruturação interdisciplinar proposta para o eixo V e suas articulações com os demais eixos do CPTEn, considerando a elaboração e documentação como base para as ações formativas dos agentes públicos envolvidos no processo.

Samuel Mendonça é pesquisador do Eixo 5 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/6369572439782922
Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis é pesquisadora do Eixo 5 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/9527743086394186
Danúsia Arantes Ferreira é pesquisadora do Eixo 5 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/9741724257766252
Thalita dos Santos Dalbelo é pesquisadora do Eixo 5 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/7483223263786988
Carla Kazue Nakao Cavaliero é pesquisadora do Eixo 5 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/2699196515879292
Evely Boruchovitch é pesquisadora do Eixo 5 do CPTEn – http://lattes.cnpq.br/1980541978397999

Texto: dossiê Transição Energética da revista ComCiência

Ilustração da capa: Paola Champi

Referências
Assis, A.E.S.Q.; Rutkowski, E.W.  “Educação ambiental como estratégia metodológica da gestão ambiental: por uma nova postura epistêmica”. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, v. 33, p. 110-124, 2016.
Bauman, Z.. A Cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Berman, M.. The Reenchantment of the World. London: Cornell University, 1981.
Carvalho, I. C. M. “A pesquisa em educação ambiental perspectivas e enfrentamentos”. In: Pesquisa em Educação Ambiental, vol. 15, n.1, 2020 p. 39- 50.
Charlot, B. “A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber”. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, p.7-18, jan./abr.2006. Quadrimestral.
Diegues, A. C. S. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec. 2008.
Fazenda, I. C. A Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia? São Paulo: Loyola, 1979.
Frigo, G.; Ifanger, L. A. “A critique of (weak) anthropocentric geoethics”. In Bohle M.; Marona, E. (ed.). Geo-societal narratives contextualising geosciences. Contextualising geosciences. Cham: Springer Nature Switzerland, 2021.
Japiassu, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Layrargues, P. P; Lima, G. F. C. “As macrotendências político-pedagógicas da educação ambiental brasileira”. Ambiente & Sociedade. São Paulo, v. XVII, n. 1, pp. 23-40, jan.-mar. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/asoc/a/8FP6nynhjdZ4hYdqVFdYRtx/abstract/?lang=pt. Acesso em 21 Ago. 2021.
McCormick, J. Rumo ao paraíso: a história do movimento ambientalista. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.
Morin, E. Para sair do Século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Nietzsche, F. Die fröhliche Wissenschaft. La gaya scienza. Berlim: Goldmann, 1999.
ONU. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em 20/06/2023.
Santos, B. S. Um discurso sobre as ciências. Porto, Portugal Afrontamento, 2002.
Santos, B. S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2008.