02.02.2022 “A energia mais verde é a que não é consumida”, declara Luiz Carlos, coordenador do Campus Sustentável, em entrevista ao SEESP
O marco legal da micro e minigeração distribuída, instituído pela Lei 14.300/2022, sancionada em 7 de janeiro último, significa avanço importante para a energia renovável no País, especialmente a microgeração por consumidores que instalarem sistemas fotovoltaicos — alternativa que teve crescimento de 316% nos últimos dois anos, chegando a 8.550MW ao final de 2021, conforme informação do governo federal. A avaliação é do professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Luiz Carlos Pereira da Silva, que vem acompanhando as discussões sobre o assunto atentamente.
Ele destaca que inicialmente regulado por resoluções da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o tema tornou-se polêmico a partir de 2019, quando se cogitou suspender os subsídios a quem produzia energia solar e transferia o excedente para a rede elétrica mantida pelas empresas de distribuição sem pagar pelo uso da infraestrutura. “Nesse marco legal, conseguiu-se criar um processo de transição e preservar o direito adquirido”, aponta.
Contudo, para ampliar significativamente o uso das fontes solar e eólica, afirma Silva, será necessário incrementar a capacidade de guardar a energia gerada, o que ainda tem alto custo e não está consolidado no Brasil. “A tecnologia de armazenamento hoje, depois da Covid, talvez seja o tema mais pesquisado no mundo inteiro”, ressalta o professor que foi agraciado pelo SEESP em dezembro de 2021 com o prêmio “Personalidade da Tecnologia” na categoria Energia sustentável.
Com larga experiência na área de energia elétrica, com ênfase em eficiência, gestão e conservação, Silva coordena o projeto Campus Sustentável e o Grupo Gestor Universidade Sustentável da Unicamp e defende veementemente a opção pela economia, ainda que haja abundância para expandir a capacidade instalada no País. “A conservação tem que ser colocada num patamar mais prioritário que a transição à renovável. A energia mais verde é aquela que não é consumida”, enfatiza.
Nesta entrevista, ele fala ainda sobre os prós e contras da energia nuclear e a necessidade de eliminar da matriz brasileira opções como usinas a óleo diesel e a utilização do carvão, embora defenda a manutenção de um parque térmico a gás natural para assegurar garantia de fornecimento. Confira a seguir.
Após muita polêmica sobre o tema, foi sancionado no início do ano o marco legal da microgeração distribuída. A legislação traz avanços?
Na minha opinião, é um avanço. Um primeiro marco legal sobre geração distribuída foi a resolução da Aneel 482, de 2012, criando os primeiros caminhos para micro e minigeração. Depois, em 2015, foi necessário fazer ajustes com a Resolução 687, abrindo para mais consumidores. Desde 2019, a Aneel vem tentando avançar, mas tocou em assuntos mais sensíveis para os agentes envolvidos nessa indústria, que é nova no Brasil, então ficou mais difícil e foi necessário mandar para o Congresso para produzir um consenso mais amplo entre sociedade, governo e empresas. Mas mesmo esse não é definitivo, ainda deixa necessidades de regulamentação, essa discussão não vai parar. A Aneel ainda tem um trabalho importante para definir as regras válidas a partir de 2028.
Uma das grandes questões era o custo para acesso à rede. Isso ficou definido a contento?
Essa é uma questão que continua em aberto a partir de 2028, até lá está tudo bem definido. É importante entender que a geração fotovoltaica só acontece durante o dia, enquanto tem sol. Quando se fala em consumo residencial, é maior à noite. Tirando esse período de pandemia em que estamos em casa, durante o dia, as pessoas vão trabalhar, à escola, tem pouco consumo. A simultaneidade entre geração e consumo não acontece de forma ideal quando se fala de energia solar. Então, a rede é fundamental para que essa tecnologia funcione bem. Quando tem bastante geração e pouco consumo, esse excedente precisa ir para algum lugar, distribui-se pela rede, pela vizinhança. No momento em que chega em casa e vai consumir, busca-se de volta na rede elétrica, que pertence à distribuidora [responsável por] ativos que exigem investimentos e precisam ser remunerados. O consumidor tem a expectativa de instalar um sistema fotovoltaico e não mais precisar da rede elétrica; se houver um blecaute, não vai faltar energia na casa dele. Não é bem assim. A energia fotovoltaica, como ela surge agora no Brasil, é um casamento entre o consumidor e a distribuidora. Na Resolução 482, o primeiro marco regulatório, foi dispensado esse pagamento pelo uso da rede. Mas precisa ter um equilíbrio entre todos os agentes e, desde 2019, a Aneel entendeu que estava na hora de retirar esse subsídio que tem que ser pago por alguém, e esse alguém são todos os consumidores. Na época, foi uma grande confusão, surgiu a ideia de que a Aneel queria taxar o Sol… Nesse marco legal, conseguiu-se criar um processo de transição e preservar o direito adquirido. Quem já tem o sistema funcionando ou solicitar a conexão à distribuidora até 7 de janeiro de 2023 é dispensado de pagamento até 2045. A partir daí, tem uma tabela progressiva de retirada de subsídio até 2028.
De modo geral, quais as perspectivas para a maior utilização de energia renovável no País, tendo em vista a dificuldade de armazenamento?
O marco legal da geração distribuída abre esse caminho para a combinação de energia renovável com sistema de armazenamento das usinas despacháveis. Também a possibilidade de ter sistemas híbridos na residência. Tem o excedente, em vez de mandar para a rede, armazena na bateria e utiliza à noite. Ou seja, não está usando a rede, essa energia não está passando no seu medidor, então, na hora de pagar, a tarifa de distribuição vai ser bem menor. O que acontece é que o custo desse sistema híbrido ainda é muito elevado. No Brasil, só é utilizado em sistemas isolados, onde não tem a possibilidade de usar a rede. A tecnologia de armazenamento hoje, depois da Covid, talvez seja o tema mais pesquisado no mundo inteiro. Há muito investimento, avanços a passos largos, e os custos caem. Em alguns países, como Alemanha, já é realidade, tem viabilidade econômica. Aqui, a fotovoltaica demorou mais para chegar, o mesmo com a eólica; o armazenamento vai demorar também, mas vai chegar, é o futuro. É fundamental para ganharmos mais penetração de energia renovável. No Brasil, temos uma vantagem comparativa, que são grandes parques de usinas hidrelétricas, porque pode priorizar uso de energia solar e eólica, enquanto isso, armazena água nas usinas. Com isso, poderemos trabalhar com reservatórios mais cheios, menos suscetíveis às crises hídricas. Para esse aspecto, o parque de usinas térmicas a gás também é interessante para se ter segurança energética. Isso pensando num crescimento forte de energia solar e eólica nos próximos anos.
No período mais recente, intensificou-se o uso das usinas térmicas, inclusive a diesel, devido à crise hídrica, e existe o debate acerca do uso de outras fontes poluentes, como carvão por exemplo. Há uma tendência na contramão do objetivo de se fazer a transição para uma matriz energética limpa?
É um conflito muito grande, que envolve forças políticas e econômicas. Eu tenho a opinião que um parque de usinas térmicas a gás é importante, mas posicionado a partir de análises técnicas, não políticas. No Brasil, não se pode aceitar o crescimento do uso de carvão e usinas a óleo; pelo contrário, temos que batalhar para eliminar essas fontes da nossa matriz. Eu costumo dizer que o Brasil é abençoado por Deus em relação a fontes energéticas. Vivemos até a maldição da fartura, que é um problema quando se tenta falar de eficiência energética. Mas esse conflito vive-se em muitos países. A Alemanha, por exemplo, decidiu eliminar da sua matriz a energia nuclear, que é limpa, mas tem o risco de acidentes. Está mais dependente de carvão, já que a fonte renovável cresce bastante, mas não é suficiente para atender todo o mercado. Mas o Brasil não é um país que precisa usar carvão ou óleo diesel.
Qual a sua opinião sobre o uso de energia nuclear no Brasil?
Como engenheiro, sou apaixonado por tecnologia e ciência. A nuclear, do ponto de vista energético, é o maior desenvolvimento que a humanidade conseguiu fazer. É uma forma muito compacta, as usinas não pequenas. A gente tem combustível, domina o processo, é energia que não polui, mas o grande problema são os acidentes que já aconteceram, então é bastante impopular. O Brasil não tem grandes terremotos, eventos que possam produzir riscos como o que houve no Japão (o acidente na Central Nuclear de Fukushima, em 2011, após a usina ser atingida por um tsunami). Não sou desfavorável ao uso de energia nuclear, mas, por outro lado, a maioria dos países está abandonando essa tecnologia. O que vai prevalecer mesmo é o crescimento das energias renováveis. A melhor opção para dar segurança a esse processo [de transição] vai ser o gás.
O senhor menciona a dificuldade em abordar a eficiência energética, tendo em vista a abundância nacional. Seria viável existir uma política nacional de conservação energética?
Isso é fundamental, muito importante. O Brasil tem bastante abundância de oferta: hidrelétrica, eólica, solar, biomassa, gás. Então nossa política sempre foi expandir. Um exemplo é a iluminação LED, uma tecnologia disponível cujo preço já caiu para patamares aceitáveis, mas continuamos a usar outros tipos, até lâmpadas incandescentes. Nos últimos dez, 20 anos, vimos um avanço muito grande na eficiência energética em geladeiras, aparelhos de ar-condicionado. Sob o ponto de vista de retrofit, que é a troca de equipamentos nas nossas casas, em instalações comerciais e industriais, a gente tem muita possibilidade, com retorno até mais rápido que [o obtido com] o sistema fotovoltaico. Mas, em geral, as pessoas não pensam muito nisso, pensam em fazer a microgeração e continuar consumindo da mesma forma. O nosso comportamento precisa mudar. A transição energética que o mundo precisa fazer em função do aquecimento global não pode deixar as pessoas de fora. A conservação de energia tem que ser colocada num patamar mais prioritário que a transição à renovável. A energia mais verde é aquela que não é consumida. Isso está no centro do nosso trabalho na Unicamp. Estamos fazendo um esforço muito grande para eliminar desperdício, que é muito grande, muito visível e muito fácil de ser identificado, especialmente em grandes instalações. Nas cidades, por exemplo, a iluminação pública ainda usa tecnologias antigas, enquanto há outras com a possibilidade de diminuir o consumo em 80%. Esse tema é carente de políticas públicas mais abrangentes e impactantes no Brasil. A Aneel vai fazer um projeto-piloto, em um estado, de leilão de eficiência energética, o que pode ser um negócio muito lucrativo, a oferta de energia nova a partir da conservação.
Projeto de universidade sustentável passa por essas questões?
Na Unicamp, a gente trabalha com projetos de eficiência voltados a retrofit de iluminação, sistemas de ar-condicionado, etiquetagem de edifícios de maneira que se possa conhecer quais os prédios mais eficientes. Como a gente tem um campus que tem semelhança com as cidades, são 60 mil pessoas por dia, estamos trabalhando com a transição para a mobilidade elétrica. A energia fotovoltaica vem junto com isso, mas não é a única solução. Quando se fala em gestão, tem que olhar todo o processo, desde a contratação até o desenvolvimento do sistema de medição e monitoramento e a organização da infraestrutura. Fundamental que as pessoas sejam convidadas a repensar, então tem na Unicamp também um projeto enorme de capacitação da comunidade para que possa conhecer essas novas tecnologias e se engajar nesse assunto.
Rita Casaro | texto-entrevista produzido e publicado pelo Sindicado dos Engenheiros no Estado de São Paulo. Para acessá-lo originalmente clique aqui.
Imagem da capa| acervo pessoal do entrevistado.